“A maioria das inovações fracassa”, diz pesquisador de Harvard
14-10-2016

Ele conta por quê e destaca o etanol brasileiro 

Calestous Juma é professor de desenvolvimento internacional em Harvard. Em seu novo livro, Inovações e seus inimigos, ele tenta entender por que certos avanços tecnológicos atraem oposição ferrenha

RAFAEL CISCATI

O queniano Calestous Juma, professor de desenvolvimento internacional na Universidade Harvard, buscava um tema para sua tese de doutorado quando decidiu visitar o Brasil, no começo dos anos 1980. A sugestão veio de amigos brasileiros com os quais ele convivia na Universidade de Sussex, no Reino Unido. No Brasil, Juma descobriu duas novidades que o animaram: a ditadura militar, em vigor desde 1964, começava a dar seus últimos suspiros sob a pressão da população, que se organizava para pedir eleições diretas: “O impacto em mim foi imenso. Nasci na África, um continente que, à época, era dominado por ditadores”, diz Juma nesta entrevista a ÉPOCA. “Os brasileiros me fizeram pensar que talvez houvesse meios de conquistarmos o que o Brasil havia conquistado.” A segunda novidade foi o programa de biocombustíveis brasileiro, o Proálcool, sobre o qual ele escreveu em seu doutorado. Juma via no programa do governo, criado como resposta às crises do petróleo dos anos 1970, o embrião de uma mudança tecnológica importante – ao mudar a forma como produzíamos energia, o álcool combustível motivava também mudanças econômicas e políticas. “Essa experiência ajudou a lançar as bases para minha teoria sobre desenvolvimento tecnológico, que continuo a usar ainda hoje.”

>>Descobrimos um jeito rápido e barato de manipular o DNA humano. Até onde devemos ir?
>>Nick Bostrom: “A máquina superinteligente será a última invenção da humanidade”

Hoje, Juma se dedica a estudar os caminhos trilhados por grandes inovações, e os obstáculos que elas precisam enfrentar para ser bem-sucedidas. Em seu novo livro, Innovation and its enemies: why people resist new technology – algo como Inovação e seus inimigos: por que as pessoas resistem a novas tecnologias –, sem previsão de publicação no Brasil, ele reconta a história de inovações tecnológicas que sofreram firme oposição social. Seus exemplos, colhidos durantes seus 16 anos de pesquisa, são variados – vão desde a resistência à margarina nos Estados Unidos do século XIX (capitaneada pelos produtores de manteiga) até a preocupações com promessas tecnológicas contemporâneas, como edição gênica e inteligência artificial.

>>“Receitamos remédios psiquiátricos a gente saudável”, diz o médico Allen Frances

Segundo ele, esses exemplos históricos mostram que a resistência a novas tecnologias é, usualmente, motivada por fatores econômicos. Juma diz que governos, empresas e cientistas precisam trabalhar com o conceito de “inovação inclusiva”: novas tecnologias mudam a forma como as sociedades se organizam e podem colocar fim a empregos. Para superar a oposição a inovações benéficas, é preciso que os muitos agentes envolvidos nesse processo pensem nas consequências dessas inovações – e pensem em como permitir que as pessoas que seriam, a princípio, prejudicadas por sua adoção entrem no grupo das pessoas beneficiadas pelas novas tecnologias.

>>O Nobel de Física premiou estudos sobre estados estranhos da matéria. Por que isso importa


ÉPOCA - O senhor conta que, quando veio ao Brasil, nos anos 1970, havia discussões quanto a se devíamos ou não usar cana para produzir álcool combustível. Havia o temor de que o etanol competisse com terras cultiváveis. Essa resistência tem semelhanças com o medo de inovações de que o senhor fala em seu livro?
Calestous Juma - Até certo ponto, sim. O medo da inovação se escondia atrás desse medo
declarado de o etanol competir com o cultivo de alimentos. Isso não aconteceria porque o Brasil já plantava cana para produzir açúcar, e o programa para o etanol se baseava em usar essas terras já ocupadas. Havia também propostas de usar mandioca para produzir etanol, o que significaria expandir o espaço de cultivo voltado para esse fim. Foi uma ideia desconsiderada. Mas havia também preocupações quanto aos efeitos da produção de etanol para o setor petroleiro e era desses setores que vinham os maiores alertas. De todo jeito, por mais que o argumento não fosse de todo válido, aquele era um debate acalorado na época. E, em parte, havia nisso certo temor diante da inovação. Mas esse era apenas parte do problema.

>>Nova dieta dos brasileiros mistura comida saudável e fast-food

ÉPOCA - O que motiva a oposição à inovação?
Juma - O fator motivador mais importante, quando o assunto é a resistência a novas tecnologias, é o medo da perda. Ocorre quando as pessoas percebem que existe a chance de perder algo que elas possuem. Os temores podem ser variados: como o medo de comprometer sua saúde, se você consumir um alimento novo que pode ser prejudicial. Caso dos alimentos geneticamente modificados. O medo de perder seu emprego, diante do desenvolvimento de uma máquina nova – como um robô. Há também o medo da perda de “acesso” – um novo produto surge e a pessoa não sabe como usá-lo. Precisa aprender a dominar uma tecnologia nova e tem medo de falhar. E, em muitos casos, existe o medo de perder poder. Quando uma nova tecnologia surge, ela muda o balanço de poder e faz com que ele assuma novas características. Poder econômico ou político. Foi um entrave que surgiu durante as discussões sobre o Proálcool no Brasil, por exemplo. O combustível usado no país era produzido pela indústria do petróleo quando surgiu a proposta de usar o etanol. Essa ideia envolvia mudanças. Politicamente, dava maior relevância ao ministro da Agricultura nas discussões sobre política energética. E uma mudança de grupos econômicos: os usineiros é que produziriam combustível. Questões econômicas, no fundo, são os mais poderosos motivadores da oposição a tecnologias novas.

>>Como colocar uma bomba-relógio no DNA de um Aedes aegypti

ÉPOCA - O senhor diz que precisamos criar “inovações inclusivas”. O que isso significa?
Juma - As sociedades são desiguais. E as novas tecnologias têm potencial para ampliar essa desigualdade. Mas essa lógica pode ser revertida. É fácil entender esse processo se pensarmos no caso dos telefones celulares na África. Por muito tempo, apenas a elite teve acesso à telefonia. Era uma tecnologia implementada de forma desigual. Quando os telefones celulares começaram a ser utilizados no continente, surgiram esforços para torná-los, deliberadamente, mais inclusivos. Duas coisas foram feitas para tornar isso possível, de modo que também os mais pobres tivessem acesso a esses recursos. Primeiro, os aparelhos foram produzidos localmente. Eram mais baratos e mesmo os mais pobres podiam comprá-los. Em segundo lugar, foram criadas linhas pré-pagas. Assim, as pessoas poderiam pagar quanto pudessem e quando precisassem usar os aparelhos. O resultado foi a ampla adoção dos celulares pelos mais pobres. A telefonia passou a ser inclusiva. A ideia da inovação inclusiva é esta: devemos ficar atentos àqueles que podem perder algo – ou supor que perderão algo – com a introdução de uma nova tecnologia. Eles é que se oporão a ela. Outro exemplo é o de quando descobrimos que os produtos químicos usados em refrigeradores destruíam a camada de ozônio. Ficou claro que a comunidade internacional precisava deixar de usar o clorofluorcarbono (CFC). A resposta foi buscar alternativas. E essa busca envolveu a participação dessas mesmas empresas que produziam o CFC. A Dupont, que produzia o CFC, tornou-se importante na busca por alternativas a ele – em lugar de combater essas alternativas.

>>Lygia da Veiga Pereira: “O cientista precisa informar a população sem viés ideológico”

ÉPOCA - A questão-chave é que devemos pensar, com antecedência, nos impactos sociais e econômicos das tecnologias que vamos desenvolver?
Juma - Exato. E, justamente porque devemos pensar no futuro, é que precisamos gerar e divulgar conhecimento científico. A comunidade científica precisa se debruçar sobre as inovações em desenvolvimento e pensar no impacto em potencial que elas podem ter. Pensar em como essas tecnologias podem afetar os empregos das pessoas. Ou nos danos em potencial ao meio ambiente. A partir daí, devemos pensar em como tornar esse impacto positivo. E esse conhecimento precisa estar acessível à população e às lideranças políticas. De modo que essas lideranças encontrem meios de lidar com esses problemas e controvérsias e evitem oposições desnecessárias às mudanças tecnológicas. Quando o Uber foi introduzido em algumas cidades, ele foi acompanhado por uma série de controvérsias. Em alguns casos, alguns motoristas de táxi decidiram aderir ao Uber. Em outros, houve conflitos entre motoristas do Uber e taxistas. Devíamos pensar com mais cuidado sobre como os taxistas poderiam se tornar parte de um sistema em que o Uber existe. Se resolvermos essa questão, não haverá oposição dos taxistas a essa inovação.

ÉPOCA - Em seu livro, o senhor tenta entender essa questão recuperando casos do passado. Fala, por exemplo, da oposição à margarina nos Estados Unidos do século XIX. É um caso engraçado, visto de nossa perspectiva atual. O que a história pode nos ensinar sobre o processo de adoção de novas tecnologias e produtos?
Juma - A consequência de não prestar atenção na história é correr o risco de repetir os mesmos debates. Além disso, as pessoas têm tendência a dizer que a resistência às tecnologias desaparece com o tempo. Ou que as pessoas que se opõem às novidades são indolentes. Temos tendência a pensar que, se educarmos as pessoas sobre como usar as novas tecnologias, elas vão adotá-las sem maiores ressalvas. Não é isso que a história nos mostra. A história nos mostra, por exemplo, que a resistência profunda a inovações tem motivações econômicas. Nós deveríamos levar essas questões em consideração ao desenhar programas de inovação. Ao desenvolver novas tecnologias, precisamos pensar naqueles que correm o risco de perder algo. Ou naqueles que temem o potencial de perder algo. Na maioria dos casos, não é a perda, mas a possibilidade de ela ocorrer, que atrai a oposição das pessoas. Se você pensar no caso da margarina: tudo o que foi feito para se opor à margarina é bastante semelhante ao que vem sendo feito para barrar cultivos de alimentos geneticamente modificados. Desde as campanhas contrárias até as restrições ao comércio desses artigos. Por um tempo, foi proibido vender margarina de um estado em outro nos Estados Unidos. Algo semelhante acontece com os organismos transgênicos, mas em nível global. Há países que não querem importar alimentos transgênicos. Há coisas que poderíamos ter aprendido a partir dessa experiência passada. E isso inclui as medidas tomadas para promover a aceitação da margarina. O governo americano suspendeu as barreiras para seu comércio, e o fato de que a margarina era um produto mais barato fez com que ela se popularizasse durante a Segunda Guerra Mundial. A margarina se tornou um alimento para os pobres. Além disso, promover o conhecimento foi algo importante para acalmar aqueles que temiam os efeitos nocivos do consumo desse alimento.

ÉPOCA - Mas vivemos em um mundo que parece celebrar grandes inovações. A oposição a ideias novas, e potencialmente benéficas, ainda é uma preocupação?
Juma - Celebramos inovações, novas tecnologias ou empresas inovadoras, porque a maioria das inovações dá errado. Poucas novas ideias são bem-sucedidas. Elas exigem um tremendo esforço. Na verdade, o fracasso é a lei. Novas ideias falham por problemas técnicos. Falham porque não alcançam sucesso de mercado. Outras tecnologias falham porque não contam com personalidades como Steve Jobs ou Elon Musk para promovê-las. Nós celebramos aquelas poucas que sobrevivem. Porque sabemos como é difícil fazer algo novo dar certo. E tendemos a nos esquecer das invenções que deram errado. Nunca olhamos para o passado para dizer: “Puxa, essa até que era uma boa ideia, que não foi para a frente”. Existe um livro chamado Inventions that didn’t change the World (Invenções que não mudaram o mundo). Ele reúne diversas invenções interessantes da era vitoriana que foram esquecidas. É muito divertido. E elas são algumas de muitas que tiveram o mesmo destino ao longo da história.

ÉPOCA - Por que devemos entender o motivo de novas ideias falharem?
Juma - Temos grandes desafios econômicos para enfrentar. Temos desafios ecológicos prementes. E temos de lidar com as preocupações geradas pela emergência de novas doenças infecciosas. Tudo isso acontecendo em um contexto de economia globalizada, com impactos globais. Os riscos de não adotarmos novas tecnologias, que poderiam nos ajudar a resolver esses problemas, podem ultrapassar os riscos da adoção dessas inovações. Dada a magnitude dos desafios que precisamos enfrentar.

ÉPOCA - Hoje, discute-se a possibilidade de editarmos a linhagem germinal humana – os gametas, óvulo e espermatozoides, que carregam as instruções genéticas herdadas pelas futuras gerações. Podemos fazer isso por meio de uma técnica barata chamada Crispr/ Cas-9. Quando lidamos com tecnologias como essa, capazes de provocar mudanças dramáticas – e, talvez, irreversíveis –, não é positivo ser cauteloso?
Juma - Há tecnologias com potencial para provocar mudanças dramáticas. Essas mudanças tendem a se dividir em duas categorias. As mudanças positivas. E as potencialmente catastróficas. Crispr/Cas-9 é um bom exemplo de inovação que pode provocar mudanças desses dois tipos. Ela pode ser usada para tratar doenças genéticas que, hoje, não conseguimos resolver por meio das terapias convencionais disponíveis. Mas há também outros usos que podem se mostrar catastróficos. A questão aqui é decidir onde queremos usar essa nova técnica. A Crispr tem mais potencial para ser usada na agricultura, de maneira benéfica, que para a edição de genes humanos. Ela pode amenizar a resistência que hoje existe aos organismos geneticamente modificados. Com a Crispr, é possível editar o DNA de uma planta sem, para isso, introduzir nele os genes de alguma outra espécie. E essa é uma das principais ressalvas em relação aos transgênicos. Quando tratamos de inovações como essa, devemos lembrar da importância da investigação científica. Os cientistas podem nos permitir olhar adiante e identificar esse potencial para catástrofe. Essa discussão existe hoje em relação à Crispr. Os cientistas debatem o que pode acontecer se liberarmos condutores genéticos na natureza, por exemplo (condutores genéticos são genes que foram alterados de modo que tenham maiores chances de ser transmitidos pelos pais aos filhos). Em casos assim, devemos abordar as novas tecnologias sem criar ferrenha oposição a elas, e nem tampouco endossá-las. É preciso, primeiro, compreender seus impactos.

ÉPOCA - Quais são as tecnologias novas que sofrem mais oposição hoje em dia?
Juma - A edição genética viu crescer rapidamente seu número de oponentes. Muitos opositores dos organismos transgênicos migraram para se opor à Crispr também. A outra área em que haverá muita ansiedade no futuro é a da inteligência artificial. A inteligência artificial pode provocar mudanças em todas as áreas da vivência humana. E mudanças perigosas. As implicações éticas disso precisam ser cuidadosamente discutidas. E isso precisa acontecer agora, porque esse campo avança muito rapidamente. A velocidade com que novas tecnologias surgem hoje não tem precedentes na história. Precisamos compreender a velocidade desses avanços. Porque eles vão exigir que prestemos mais atenção aos impactos em potencial dessas tecnologias.

ÉPOCA - O filósofo Nick Bostrom, da Universidade de Oxford, se dedica a pensar as possíveis consequências da inteligência artificial (IA). Mas tende a uma posição pessimista: Bostrom diz que, se mal planejada, a inteligência artificial pode significar o fim da humanidade. Esse tipo de abordagem, que antecipa catástrofes, é razoável? Ou existe o risco de ela provocar medo e evitar a adoção de tecnologias importantes?
Juma - A inteligência artificial vai trazer grandes transformações. Mas não acredito que ela vá significar o fim da humanidade. Acho que subestimamos a capacidade humana de sobreviver a própria estupidez. O problema discutido hoje, no campo da inteligência artificial, é o dilema do controle – como criar freios para parar essas máquinas caso algo fuja ao esperado, fuja ao nosso controle. Essa é a questão mais discutida em meio às empresas que lideram pesquisas em inteligência artificial. Mas uma das coisas mais interessantes em relação a essa tecnologia diz respeito à maneira como ela pode acelerar o processo de descoberta científica, de aprendizado. Nós podemos ensinar máquinas a cumprir determinadas funções. E podemos ensinar as máquinas a investigar soluções para os nossos problemas. Essa tecnologia pode nos trazer consequências boas ou ruins. Vai depender de como vamos projetá-la. Mas eu não compro essa ideia de que a IA representará o fim da humanidade. Não é a primeira vez que esse argumento catastrofista vem à tona. Ela não é de todo ruim. Porque soa um alarme, faz a comunidade internacional discutir essas questões. Algo parecido aconteceu com os transgênicos. Inicialmente, pensava-se que eles seriam catastróficos para a economia e para o meio ambiente. Essas previsões não estavam completamente corretas. Mas esse tom, alarmista, foi importante para fazer a comunidade internacional discutir o impacto dos transgênicos na economia e no meio ambiente. Foi importante para nos tornar mais cuidadosos. O mesmo deve acontecer no campo da inteligência artificial.