Da teimosia como método
07-10-2014

A presidente Dilma Rousseff não gosta do mercado financeiro - no que é correspondida com juras de eterno desamor. Faz sentido. São duas maneiras distintas de enxergar o mundo, o que envolve preconceitos, exageros e simplificações.

Nossa presidente é economista e, possivelmente, a primeira pessoa a morar no Palácio da Alvorada que sabe o que é a taxa Selic. Ela tem convicções profundas sobre como funciona e como deveria funcionar a economia brasileira. Tem todas as respostas. Se necessário, tem as perguntas também. Ao contrário do seu antecessor, que delegou a gestão da política econômica assim como um paciente confia em seu neurocirurgião, Dilma Rousseff faz ela mesma sua operação se valendo de espelhos colocados no teto do centro cirúrgico. O mercado também tem suas crenças e mitos, a começar pelo fato de que subestima as dificuldades de se governar nos meandros das regras democráticas.

Talvez a discussão sobre o déficit público seja onde estas diferentes visões sejam mais claramente antagônicas. A economista Dilma e seus discípulos teimam em cortejar a ideia vagamente keynesiana de que os gastos públicos são intrinsecamente úteis e devem seguir um padrão anticíclico: têm de aumentar nas fases de recessão, para mitigar a queda no nível de atividade, e devem desacelerar nas fases de crescimento, quando parte maior da arrecadação pode ser alocada para o serviço da dívida.

Por esse raciocínio, a expansão dos gastos em períodos em que as vacas emagrecem teria o condão de sustentar o nível de atividade, promovendo o aumento da arrecadação. No limite, é o equivalente à invenção do moto-contínuo, um mecanismo que fornece ao exterior mais energia do que consome, em flagrante contradição com a primeira lei da termodinâmica.

O governo semeia gastos hoje e colhe impostos amanhã, evitando as agruras do desemprego. Só existe um problema neste devaneio: não é assim que funciona. Estamos em recessão? Vamos aumentar os gastos para estimular o nível de atividade. Estamos crescendo? Vamos aumentar os gastos para resgatar a dívida social.

Com essa má vontade conceitual, a performance da política fiscal na gestão Dilma é lamentável. No acumulado entre janeiro e agosto de 2014, o saldo do superávit primário foi de míseros R$ 10,2 bilhões, pouco mais do que 10% da meta para o ano. Mais uma promessa a ser descumprida - e nem assim a economia anda.

São três os principais argumentos contra a tese governista. Em primeiro lugar, ao considerar os gastos públicos como um todo, põe-se em segundo plano a necessidade profilática de cortar gastos injustificados. Trata-se de medida higiênica. Da mesma forma que se devem cortar as unhas regularmente, também é preciso cortar gastos públicos de tempos em tempos. Sob a proteção da incúria, viceja o desperdício.

Em segundo lugar, é imperioso rediscutir a estrutura de gastos, ainda que isso signifique tocar em temas delicados. Para citar um exemplo usual: o contribuinte brasileiro paga mais de 3% do Produto Interno Bruto (PIB), cerca de quatro vezes a despesa do Bolsa Família, para financiar um sistema de pensão por morte benevolente e vulnerável a fraudes. A média desse tipo de gasto nos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) não chega a 1% do PIB. Por que o Brasil, classe média baixa do mundo, deveria ter um sistema mais generoso que os países ricos?

Por fim, e talvez principalmente, o descaso com a política fiscal onera demasiadamente a política monetária, deixando ao Banco Central a inglória missão de combater a inflação por meio de juros altos, o que é profundamente prejudicial à distribuição de renda. No ano passado, R$ 249 bilhões foram gastos com o pagamento de juros. Como esses bilhões são distribuídos? Por sorteio? Jogados de um helicóptero? Pior: esses recursos são distribuídos na exata proporção da riqueza financeira previamente existente. Quem tem muito ganha muito, quem nada tem não ganha nada - e quem deve, a começar pelo próprio governo, paga tudo. Nada mais regressivo.

Os mais ricos. Estudo pioneiro realizado recentemente pelos economistas Marcelo Medeiros, Pedro Souza e Fabio Castro (O Topo da Distribuição de Renda no Brasil - 2006-2012) mostra, a partir de análise das declarações do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF), que há extrema concentração de renda entre os mais ricos. A diferença entre essa fonte de dados e as pesquisas do IBGE que embasam as declarações ufanistas do governo, que proclama ter desconcentrado a renda, é o fato de que a subdeclaração é muito menor nos dados da Receita Federal, seja porque o pesquisado não se sente seguro em declarar sua renda ao IBGE, seja porque nem os ricos sabem exatamente quanto ganham todos os meses com o recebimento de juros, informação disponível nas declarações.

Em 2012, enquanto a parcela de 1% de mais ricos obteve uma renda média anual de R$ 553 mil, o 0,1% de mais ricos (os bacanas entre os bacanas) se aboletou com nada menos que uma renda média de R$ 2,37 milhões, quase R$ 200 mil por mês. Esse pequeno grupo de brasileiros garfou neste ano quase 11% da renda total do País, porcentual que cresceu nos últimos anos. Nos levantamentos domiciliares do IBGE, a fração do 0,1% de mais ricos fica com menos de 4% da renda.

Controlar o gasto público não é modismo neoliberal do mercado financeiro. Uma política fiscal complacente só agrava os desequilíbrios da economia. Persistir na tese de que há funcionalidade no aumento contínuo e desnecessário dos gastos públicos é apenas teimosia que não vai nos tirar do atoleiro. O próximo governo não poderá persistir com uma política fiscal contraditória e perdulária, sob pena de encaminhar o Brasil para uma crise institucional, da qual ele mesmo será sua maior vítima.

Luís Eduardo Assis - economista, foi diretor de política monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e da FGV-SP