Polissacarídeos impactam no processamento industrial da cana-de-açúcar
17-03-2025

O desafio das gomas e ácidos na produção de açúcar e etanol, agravado por queimadas e degradação microbiana

A indústria sucroenergética enfrenta desafios constantes no processamento da cana-de-açúcar, especialmente quando fatores externos afetam a qualidade da matéria-prima. A presença de polímeros e ácidos pode interferir diretamente na eficiência industrial, comprometendo a produção de açúcar e etanol. A queima da cana, associada à degradação microbiana e às reações químicas naturais, intensifica a formação de polissacarídeos e ácidos, resultando em dificuldades operacionais, como perda de rendimento, aumento da viscosidade e queda na qualidade do produto final.

Este foi o assunto debatido por Márcia Mutton, professora universitária, da FCAV/UNESP, Jaboticabal-SP, durante a palestra “Fisiologia e compostos químicos da cana e seus impactos (estiagem e queimada de cana)”, no painel “Performance Industrial com qualidade de cana adversa”, na 9ª edição do DATAGRO Abertura de Safra Cana, Açúcar e Etanol, realizada nesta quarta e quinta-feira (12 e 13), em Ribeirão Preto- SP.

A professora disse que a cana-de-açúcar acumula açúcares, que são carboidratos compostos por carbono, hidrogênio e oxigênio. Esses açúcares podem ser classificados de acordo com o tamanho da molécula:

Monossacarídeos: são carboidratos formados por uma estrutura mais simples de um grupo aldeído ou cetona, como glicose (aldose) e frutose (cetose), essenciais para o processo fermentativo.

Dissacarídeos: compostos por duas unidades de monossacarídeos, como a sacarose, principal açúcar para a produção de açúcar cristal.

Oligossacarídeos: possuem entre 3 e 10 unidades, podendo causar problemas no processamento industrial.

Polissacarídeos: cadeias longas de monossacarídeos, presentes na celulose, amido, hemiceluloses, pentosanas e pectinas.

“Em pequenas quantidades, não causam problemas, mas quando acumulados, prejudicam severamente a produção. A formação de polissacarídeos no processo industrial pode levar à gelatinização e emulsificação durante o aquecimento e a caleagem, recristalização na evaporação e variação na relação amilose/amilopectina, dificultando a extração do açúcar”, explicou.

O impacto das queimadas na qualidade da cana

Márcia lembrou que o ano passado registrou incêndios de grande escala nos canaviais, resultando em danos severos aos colmos da cana. Como já demonstrado por estudos de Foster e Irvine (1981), as queimadas resultam em destruição da sacarose; diluição por fluxo de água na fibra; perda de açúcar por fluxo das raízes; perda física do açúcar pelo aquecimento do caldo e exsudação de açúcar, facilitando o crescimento de microrganismos.

“A consequência foi uma qualidade deteriorada da matéria-prima, agravada pela seca que seguiu os incêndios. Isso levou à perda de água, aumento no teor de fibra e dificuldades na moagem e extração, elevando a perda de sacarose no bagaço. Além disso, mesmo após a queima, a cana continuou respirando, resultando na inversão de sacarose em glicose e frutose, favorecendo o crescimento microbiano”, ressaltou.

O papel dos microrganismos na produção de gomas e ácidos

Segundo a palestrante, a degradação da cana favorece o desenvolvimento de bactérias como Leuconostoc mesenteroides, responsável pela formação da dextrana, um polissacarídeo 100% composto por glicose. Essa bactéria produz enzimas como:

Dextransucrase: degrada a sacarose, liberando frutose e formando dextrana.

Levansucrase: converte sacarose em levana, outro polissacarídeo prejudicial.

Alternansucrase: forma a alternana, também problemática.

Fosfoquetolase: em presença de oxigênio, produz ácido lático, ácido acético e CO₂; sem oxigênio, gera ácido lático, etanol e CO₂.

A manitol desidrogenase utiliza a frutose restante para produzir manitol, composto que interfere na qualidade do processo. A combinação de dextrana, ácidos orgânicos e polissacarídeos leva ao aumento da viscosidade do caldo e reduz a eficiência da fermentação.

Estudos e impactos na indústria

Márcia citou como exemplo, um estudo realizado por José Paulo Stupiello. presidente da Sociedade dos Técnicos Açucareiros e Alcooleiros do Brasil (STAB) Nacional, referência mundial do setor sucroenergético, em uma usina ao longo de 35 semanas, que confirmou que os teores de ácido lático acompanham os teores de dextrana formados dentro da fábrica.

“Eggleston (2004) também identificou essa relação, reforçando a necessidade de monitorar não apenas a dextrana, mas também o ácido lático”, disse.

A professora comentou que a análise dos resultados determinados durante o período de 19 de agosto a 17 de outubro de 2024, revelou que foram processadas 8 milhões de toneladas de cana, das quais 1,049 milhão eram de cana queimada (17% do total).

“A acidez no processo atingiu picos de 19 g/L, enquanto os valores de pH apresentaram grandes variações. A umidade reduziu significativamente e os teores de fibra aumentaram, alcançando 38%, impactando a moagem. A presença de compostos fenólicos, amido e manitol foi elevada, comprometendo a recuperação de açúcar. O teor de etanol em amostras processadas indicava deterioração da qualidade da matéria-prima, com fermentação dos colmos, antecedendo ao processamento industrial”, afirmou.

Estudos anteriores, como os de Clark e colaboradores (1996), já demonstravam a relação entre o tempo de armazenamento e a formação de dextrana. Cana processada com mais de 12 horas de armazenamento apresentava concentração elevada de dextrana, dificultando a recuperação de açúcar.

Soluções e estratégias para reduzir os impactos

Diante dos desafios, a professora encerrou sua palestra reforçando que algumas estratégias são fundamentais para minimizar os impactos negativos da degradação da matéria-prima:

Cana sadia não apresenta teores de dextrana

Redução do tempo entre colheita e processamento: Processar a cana no menor tempo possível após a colheita reduz a formação de dextrana e ácidos orgânicos.

Controle da temperatura e pH do caldo: Ambientes de pH neutro e temperaturas abaixo de 60°C dificultam a proliferação bacteriana.

Monitoramento de açúcares e polissacarídeos: Implementação de análises via HPLC para acompanhar a presença de oligossacarídeos e polissacarídeos além da dextrana.

Uso de enzimas específicas: Tratamentos com enzimas que degradam polissacarídeos podem auxiliar na recuperação do açúcar.

Controle da contaminação microbiana: Aplicação de biocidas específicos e melhoria das condições sanitárias nas usinas.

Andréia Vital